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Trecho Inicial da obra Galáxias, de Haroldo de Campos |
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Desde 2011 eu sou compositora de música experimental. Para mim, a grande vantagem de trabalhar com artes experimentais (em
geral) é poder inventar os próprios procedimentos de trabalho. Qualquer
material a priori pode ser usado. No
campo do som, esses limites parecem não existir; podemos usar ruídos, sons
sintetizados, voz com texto, voz sem texto, objetos, instrumentos. Também
podemos partir de materiais de outros tipos para iniciar a criação sonora, por
exemplo, um texto, uma poesia, um quadro, um espetáculo.
Nesse texto vou comentar um pouco o processo de fazer música
experimental a partir de texto (nesse caso, poético). Em 2015, realizamos um
concerto do NME (https://www.facebook.com/nmelindo ) na Casa das Rosas
chamado li-vro. O NME é um coletivo de música experimental atuante no
estado de São Paulo desde 2011 e do qual faço parte. Naquele projeto, cada
compositor estava incumbido de criar uma obra sonora a partir de um texto de
sua preferência. Escolhi o livro Galáxias, de Haroldo de Campos, pois tinha
lido recentemente alguns textos desse livro e gostado bastante. Em geral, os
textos possuem fluxo muito intenso (parecem não ter começo e nem fim) e que
possuem uma sonoridade bem peculiar. Muitas repetições, muitas línguas
estrangeiras no meio. Resolvi pegar o primeiro texto e o último para trabalhar:
logo descartei o último, pois o primeiro já tinha um material denso e rico e achei
que seria melhor focar nele.
O próximo passo era definir como me aproximar do material textual. Logo de cara, vi que o que me interessaria mais era a forma do texto, que parecia caótica e entrecortada. Decidi ir por aí, tentar entender um pouco do procedimento de criação do autor para usá-lo. Mas eu também não queria usar apenas a forma e desperdiçar o conteúdo das palavras do próprio texto. Creio que cada palavra contém uma imagem (gerada pela combinação das letras), um sentido e um som. Resolvi, então, usar a sonoridade do texto - algumas repetições, rimas, variações, etc -, algumas vezes com seu sentido outras tentando fragmentar para que perdesse o significado.
Assim, o primeiro procedimento foi gravar o texto na íntegra. Em seguida,
manipulei essa gravação em diversos programas de edição e alteração de som, de
forma a criar alguns buracos, acelerações. Gravei alguns outros tipos de sons,
como uma folha sendo amassada e um rangido - na mesma ideia de distorção das
coisas (do texto e dos sons). Depois de criadas essas manipulações, fiz um
trabalho de colagem, de colocar os fragmentos onde eu achava que elas deveriam
ficar, criando momentos mais caóticos e outros mais calmos e compreensíveis. Na
segunda metade da peça, usei os mesmos materiais sonoros, mas os trabalhei de
forma muito mais abstrata, usando principalmente loops, que eram acelerados e
desacelerados. Ao final, o texto foi retomado.
…
Há muitas formas de se aproximar de um material textual. Eu poderia, por
exemplo, ter lidado somente com o material imagético do texto, com os assuntos
do qual ele fala. Nesse caso, tudo fica mais misturado, pois além de todas as
formas e assuntos abordados, o autor faz metalinguagem, escreve sobre escrever.
Caso o texto tratasse de uma história mais tradicional, linear, eu poderia
tentar criar "climas" que se relacionassem com os acontecimentos do
livro. Ou poderia tentar contar a história, dar conta da narrativa em si. Como já
dito, tudo pode ser feito em matéria de experimentação. Compor sobre um texto é
como dançar sobre arquitetura (copiando uma frase famosa mas distorcendo-a um
pouquinho). A tradução em algo diferente, nesse caso, não é exata, e sim
totalmente subjetiva, passando apenas pelas escolhas e interpretações do
criador sonoro. Na verdade, nem é uma tradução, mas uma transdução, pois estamos gerando um material fisicamente diferente.
Certa vez ouvi a história de um escritor que recusava a qualquer pessoa
se inspirar em sua obra para criar óperas, ballets, outras obras: a ideia de
perder o controle dessas ramificações de suas histórias era dolorosa. Por isso,
não se deve confundir a obra original com obras livremente inspiradas nelas. Se
eu tivesse que fazer jus à qualidade do texto do Haroldo de Campos para poder
compor a partir de seus trabalhos, eu nem me arriscaria. Mas também penso que
devemos ser livres para tentar nos comunicar e usar a obra dos outros (sempre
dando os devidos créditos, claro). Fazer uso de referências.
NOTAS:
1- O NME tem uma revista online, a linda (http://linda.nmelindo.com/), e por alguns anos
a escritora Natália Keri criou textos à partir de sons, e alguns compositores
criaram sons a partir de seus textos. Esse material pode ser acessado aqui http://linda.nmelindo.com/?s=keri .
2 - Todas as obras criadas para o projeto li-vro podem ser escutadas aqui (https://nmelindo.bandcamp.com/album/li-vro).
Julia Teles é compositora e editora de som. Seus trabalhos incluem
composição de música experimental, improvisação, composição de trilha sonora
para filmes e teatro e edição de som para filmes (no estúdio Sonideria). Faz
parte do coletivo NME, que desde 2011 tem produzido concertos e uma
revista online (linda) sobre cultura eletroacústica e experimentalismo.
Mais informações: http://juliateles.com/
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